Hoje é
carnaval e cá em casa ainda há uma pessoa que dorme a esta hora e eu já
trabalhei umas seis horas.
O dia
está cinzento, já brilhou o sol, mas foi por pouco tempo.
A casa
foi invadida por uma espécie de silêncio.
Em volta
e no condomínio em frente da parte norte, parece que virou túmulo. Mas há gente
em casa, há vários carros estacionados no parque.
No meu
edifício, ouve-se ao longe uma qualquer máquina de lavar, os pios das rolas nas
traseiras, a máquina de secar ao fundo da cozinha a uns 20 metros de distância
e que por isso, chega mais ou menos em surdina.
Uma
avioneta que levantou voo de Tires e passa próximo.os pombos que se desunham
sobre a pimenteira nas traseiras, para ver quem se aventura a vir ao parapeito
da janela onde estão as sementes de girassol que tanto gostam...
Há como
que uma beatificação do espaço que me envolve.
Odeio
carnaval. Odeio circo. Odeio tudo o que é a exploração, seja do ser humanos,
seja dos animais.
Penso
igual a Vergílio Ferreira, os homens adoram carnaval, porque é aí, não que se
mascaram, mas pelo contrário, desmascaram-se....
Cada vez
mais tenho necessidade de entregar ao papel o que vai num dos quartos do meu
ser, porque são muitos. E cada quarto seus segredos e enigmas. Alguns fechados
a sete chaves e a chave jogada ao mar.
Ao
contrário das outras pessoas, o carnaval para mim é símbolo de tudo menos
alegria. É como que uma dança maqueavélica, dionisíaca que nunca precisei
dançar, porque nunca permiti que meu coração fosse invadido pelas trevas.
Como
refere Saramago, se o teu coração é de ferro, bom proveio, o meu fizeram-no de
carne e sangue e sangra. O meu é igual.
Nunca
quis saber de coisas estranhas e de maluquices.
Houve um
tempo da minha vida em que me deixei arrastar por alguns "amigos",
para umas quantas maluquices, como ir dançar à meia noite para o Founder's Inn
ou ir ao Autódromo etc. Onde nunca entrou droga, isso nunca!!
Mas bom
mesmo, era fazer o roteiro dos cinemas mesmo em Cascais. Cinemas que já não
existem.
Ia-se ao
S. José às 9 da noite e depois ao Palácio à meia noite, acaba-se ceando no Trem
velho, junto à estação de comboios.
Ou ao
Ryade e depois a outro qualquer, jantando nos Doze na Rua Direita. Isso era o
que gostávamos mesmo e sempre gostámos. Ou ir até ao Trem velho beber uns gins
e acabar jantando por lá...nada que metesse carnaval.
Foi tudo
aquilo que foi cimentando uma cumplicidade que ultrapassa amizade e amor, ou
paixão. E tudo sempre com o meu silêncio pelo meio, porque ao contrário de
outros, eu alimento-me dele.
E quando
dei por isso, quem me acompanhava, já então meu marido, me disse que achava
tudo aquilo uma parolice, uma depravação e que nós dois éramos muito mais do
que aquilo. E parámos.
Há
pessoas que precisam de tanta coisa porque nunca se deram conta de que estão
sozinhas, na maior solidão.
Eu não,
nunca estou só. Mesmo quando estou sozinha, o meu cérebro é uma orquestra,
nunca serena, nunca pára. Vibra, ressoa e cria.
Por tudo
isso eu odeio carnaval.
Carnaval
é solidão, é tirar a máscara que toda a gente leva o ano inteiro, fingindo o
que não se é.
O
privilégio de ter este silêncio que só acaba quando coloco nos ouvidos os
auscultadores ligados ao Youtube e vou ouvindo as minhas músicas de eleição.
Esse silêncio é mesmo o que me apega a esta casa de mais de trinta anos,
parcialmente virada a norte e por vezes fria, com uma luz inigualável, sem
estrada perto, pelo menos onde estou na parte nordeste, sem gente barulhenta,
apenas com o pios dos inúmeros e muito raros pássaros que por aqui passam, dada
a aproximação de quintas e árvores centenárias que vejo da minha janela.
Silêncio que vale mais do que o ouro, mais do que tudo e faz parte de mim. Onde
me envolvo e vivo, serenamente sem pressa...tomara durasse para sempre.
GR